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terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Gurus e Couscous

 

[caption id="attachment_255" align="aligncenter" width="500"] Montanhas da Argélia ao longe, vistas do deserto de Merzouga, Marrocos[/caption]

“Para a esquerda é perigoso. É Algérie, não seguro para senhoras turistas. Fica aqui neste lado do deserto. Sempre para Norte, depois das 3 dunas grandes, encontras um acampamento nómada. Podes ir lá aprender a cozinhar o couscous como pediste. Eles gostam dos turistas, vai ser bem-vinda a senhora Portuguesa.” - enquanto me dava estes conselhos e advertências num Inglês safíssimo, os olhos de Mohamed percorriam ora as dunas da Argélia ao longe, ora a sua aldeia de 7 casas no deserto de Merzouga.

As dunas de Erg Chebi espalhavam-se para Norte e para Sul até se perderem da minha vista. O Sol , que nunca mais se havia de descolar da minha pele, era o Rei daquela praia sem mar. Penso que estou cheia de sorte por ter encontrado alguém que fale tão bem Inglês porque não faço ideia por onde começar. Tenho sono mas não quero perder tempo, só tenho 4 dias para esta viagem.

Levanta-se um vento. Aperto o casaco, limpo a areia dos olhos e penso que tenho mesmo que arranjar maneira de largar o escritório. Aos poucos anda a enlouquecer-me toda esta pressão de ter horários fixos, e tarefas fixas, e rotina, e autoridade e pouca liberdade. E para quê? Para poder ter dinheiro para viajar. É um ciclo viciante. Alimento aquilo que me prende para comprar alguns dias de liberdade.Parece que o deserto me puxa pela introspecção. Mas nem é bem isso. É mais saber que este sentimento vai estar sempre presente. E toda a gente está igual. É tão raro encontrar alguém que te diga“que bom, amanhã vou trabalhar. Adoro segundas-feiras!”. Mas assim é que havia de ser. Porque dava para ser. Porque há gostos para tudo, estamos é desconectados e desconsertados. Completamente alienados. E eu a saber, colaboro.

 

[caption id="attachment_256" align="aligncenter" width="500"] Dunas de Erg Chebi, Marrocos[/caption]

Sacudo os ombros, penso que a viagem louca de 12 horas de 4x4 que acabei de fazer por Marrocos, está a começar a pedir-me sopinhas. Sobrevivi às curvas do Atlas em velocidade árabe e agora merecia uma caminha mas parece-me que o Mohamed está a puxar de um telemóvel.

Uma chamada telefónica de 10 segundos e alguns minutos depois, já o o filho vem caminho com um camelo pela corda e um sorriso divertido.

“A senhora Portuguesa quer ir ás dunas aprender a cozinhar couscous com os berberes nómadas não é? Mohamed leva a senhora com muito prazer. É muito perto. Trouxe couscous? Vamos comprar na mercearia do meu tio.” - apresenta-se assim o segundo Mohamed que conheci naquela dia. Alto, magro mas forte e moreno, sorriso fácil, Inglês muito bom. A pronúncia era fraca mas o vocabulário, impecável. Falava com inteligência e curiosidade mas escondia um pequeno esgar de ironia na atenciosa simpatia. Como se soubesse tudo sobre mim, como se soubesse segredos e estivesse para além de qualquer surpresa.

“Olá Mohamed. Obrigada, eu não trouxe o couscous, estava a contar conseguir comprar aqui convosco. Vamos então à mercenária do teu tio quando quiseres. Eu parei aqui na tua aldeia porque o senhor que me trouxe até aqui, o guia, mostrou-me um hotel perto daqui e disse-me que ia encontrar guias para o deserto e uma pequena mercearia nesta aldeia. Parece que estou com sorte, vocês falam todos muito bem Inglês. Em Casablanca e Marrakech tive alguma dificuldade com a língua. Onde aprendeste? Vocês vão à escola?”- ao mesmo tempo que fiz a pergunta, pensei se teria parecido ofensiva. Estaria a insultar a forma de vida deles? Estaria a ser condescendente e a comportar-me como uma ocidental com a mania que sabe tudo, tal e qual como aqueles viajantes parolos que tanto me irritam? Mas o Mohamed estava preparado para mim. Ele já tinha ouvido todas.

“Algumas crianças da aldeia vão. Eu não fui. O meu irmão foi. Ele ensinou-me a ler e escrever. Ele agora estuda em Londres. Talvez um dia eu vá visitar.”

“Então e o inglês? Aprendeste com os turistas? ”

“Sim, com os turistas, também. E com a Internet.” - Oh, ele conhece a Internet. No Sahara. - “Tens Internet aqui no deserto?” - pergunto.

”Não tenho nem computador nem Internet. Mas passa um autocarro aqui todos os dias de manhã e volta para cá à tarde, para a cidade mais perto. Eu vou lá muitas vezes mexer no computador e na Internet. Aprendi a ler Inglês na Internet e isso ajudou-me também aqui com os turistas.”

”Sem dúvida que ajudou. Falas melhor do que muitos amigos meus que estudaram quase 10 anos de inglês na escola.” - mas o Mohamed também não tinha paciência para elogios destes. É claro que ele tinha aprendido, era tão capaz como qualquer pessoa no Mundo. Mais do que muitas. Tantas.

“Vamos comprar os couscous?” - mudou de assunto. Que bom é conhecer estes gurus improváveis.

A mercearia tinha um número surpreendente de coisas. Uma pequena casa de cimento com algumas estantes de madeira, algumas feitas com tábuas improvisadas, apresentava uma variedade de bolos, bolinhos e bolachas, batatas fritas de pacote, snacks e chocolates. Pãozinhos, detergente para a roupa...e couscous. Comprei couscous, uma garrafa de água e um saquinho cheio de chocolates.

“Já andou de camelo? É fácil. Quer ir agora?”- queria dizer que não, que queria dormir e tomar banho e descansar e que amanhã íamos fazer tudo mas já o Mohamed estava a pedir ao camelo que se ajoelhasse. Vamos então, pensei. Vou-me lembrar disto amanhã ou vou cair do camelo de exaustão e calor?

Nunca tinha andado de camelo mas foi como se a coisa se tornasse natural ao fim de muito pouco tempo. O camelo parecia estar bem disposto. Vi-o a sorrir umas vezes. E lá se foi, devagarinho, rumo à repetição dos cenários e de nós mesmos. Pensei, pensei, pensei. Pensava que dormia, às vezes quase que sentia que o fazia mas com medo de cair, nunca me deixava ir. Ao fim de quase uma hora, o Mohamed perguntou-me se eu queria descer do camelo e subir a uma duna. E queria e fui. Subimos devagar sem falar, até onde se conseguiu.

[caption id="attachment_257" align="aligncenter" width="500"]Mohamed a conduzir o meu camelo. Mohamed a conduzir o meu camelo.[/caption]

Enquanto subia a duna, ia-me lembrando que o meu trabalho não me deixava tempo nenhum para fazer exercício e que estava a ficar fora de forma. Na minha cabeça ainda era a miúda desportista e cheia de genica de há anos mas os pulmões e os músculos esqueceram-se de ficar nos 15 e depois nos 25 e depois nos 30... Bem é melhor não arrastar os pensamentos para aí, pensei. Lembra-te de viver o momento e aquela coisada toda. Funciona sempre para estas angústias das crises existenciais. Só que às vezes já não.


“Vamos parar aqui um pouco para descansar? A senhora não parece feliz. Escolhi uma duna muito grande...desculpe, a senhora parecia em forma. Vamos parar?”


“Por favor, Mohamed! Trata-me por tu, estava mesmo agora a sentir-me velha e tu com a senhora! Não me sinto assim tão mais velha que tu. Eu estou bem, a duna não é grande demais, eu estava só a pensar no meu trabalho e nas desculpas de não ter tempo para o que importa. Nada de sério.” - Mohamed olha para mim com um ar surpreendido e sinto que pela primeira vez olha para mim com olhos de ver. Diz que sim com a cabeça e põe os olhos no horizonte.

“ E tu, gostas do teu trabalho?" pergunto, "Gostas de estar aqui? Já alguma vez estiveste fora daqui? Pareces tão inteligente, ias gostar de conhecer o Mundo e ver outras coisas fora daqui.” - a estas minhas perguntas, Mohamed sorri com ar de quem já ouviu esta tantas vezes; outra vez, o que é que se passa comigo hoje? Venho para aqui cheia de aventuras na cabeça e esperança de interacção cultural e depois sou um autêntico elefante numa loja da china a falar com as pessoas.

Ele viu na minha cara a compreensão das minhas falhas e desta vez, quando sorriu, foi com familiaridade. Somos os dois da mesma mãe, tu só falas diferente de mim e tens outras grilhetas que não as minhas.

“Eu compreendo. Eu sei que parece que nós precisamos de ser salvos. Eu gosto do meu deserto, dos meus camelos, da minha família, da minha aldeia, da minha vida. Eu nunca estive fora da aldeia mais próxima daqui. Um dia eu gostava de ir a Londres ver o meu irmão mas que não quero ir morar para lá.

Eu só quero conhecer com os meus olhos aquilo que eu vejo e leio na Internet.

É como tu, que vieste à minha casa porque viste nos livros e queres conhecer mas não pensas talvez em morar aqui. Eu quando penso no resto do Mundo, também penso assim. Penso com curiosidade daquilo que não conheço mas não penso em viver lá. Não penso em sair aqui. Eu quero casar aqui e ter os meus filhos aqui, no deserto.

Eu sei o que se passa no Mundo. Eu só tenho 20 anos mas no deserto o tempo passa mais devagar, o meu dia são dois dias teus.

Eu sei que parece que nós não somos muito felizes aqui, que, como vocês dizem “não temos condições” porque não temos a vossa água quente que vem de tubos nas paredes e que vocês desperdiçam não sabendo que é um tesouro, uma dádiva da barriga e das veias da Mãe para nós. Porque nós não temos escolas e os nosso filhos não apreendem as mentiras que eu leio na Internet. Porque os livros da escola não ensinam o que é importante.

Eu não quero passar 15 anos a estudar como o meu irmão. Todos ficam orgulhoso porque ele é inteligente mas todos ficam tristes porque ele foi ser escravo. Foi ser escravo da casa muito moderna que comprou. Agora não pode visitar a família porque tem que pagar a casa e a casa agora é mais importante que a mãe dele e o irmão e a irmã mais nova que ele só viu duas vezes.

Eu tenho tempo para tudo o que eu quero. Eu tenho tempo até para ter tempo de mais.

E tu estás infeliz porque tu também sabes isto mas isto não é um segredo para o povo do deserto. Nós sabemos bem aquilo que temos e o quanto vale ter uma vida selvagem, o desafio da sobrevivência, o valor das relações pessoais e a importância da solidão.

O povo do deserto aprende a falar pouco e dizer muito. Uns com os outros nós somos diferentes. Com vocês, turistas, nós fazemos o nosso papel de árabes do deserto, somos uma atracção turística para vocês. Para nós está tudo bem, vocês pagam-nos e nós podemos comprar mais camelos e mais água e dar alguns presentes às namoradas.

Então, eu agradeço por dizeres que eu sou inteligente. Eu concordo, e é por isso que eu escolho estar aqui, longe da deturpação do que somos. Tu também pareces ser inteligente, porque é que ainda não arranjaste maneira de ser feliz?

 

 

1 comentário:

  1. you post is very well elaborated, it interested me a lot, thanks for it.

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